A Reconstrução do Mercado Imobiliário

O mercado imobiliário brasileiro está passando por uma das maiores crises de todos os tempos. A tempestade perfeita para o setor reúne, a um mesmo tempo, juros altos, inflação alta, recorde negativo do índice de confiança do consumidor, desemprego recorde e renda em baixa, além de encontrar as empresas endividadas, com estoques elevados e grande número de distratos. Tudo isso causa uma queda nos preços dos imóveis, obrigando as incorporadoras a venderem com descontos, jogando mais lenha na fogueira e realimentando o círculo vicioso em que o setor entrou.

A crise parece mais assustadora ainda quando olhamos em retrospectiva e comparamos com o período de 2009 a 2012, quando vivemos uma euforia no mercado, com lançamentos, vendas e preços em alta.

De toda forma, as incorporadoras poderiam enfrentar com mais força essa crise se houvessem resolvido um problema claro no setor, e que pouco se discute: o modelo de incorporação no Brasil é extremamente perverso para os incorporadores.

Explico. Quando um imóvel é comprado na planta, é assinado um documento chamado Instrumento Particular de Compromisso de Compra e Venda de Imóvel. Em todos esses documentos, de qualquer incorporador, pode-se notar nos últimos parágrafos que o compromisso é irrevogável e irretratável, além de os direitos e obrigações dos contratos serem transferidos a herdeiros e sucessores, no caso da falta do titular.

Essa cláusula, desde sempre, ficou esquecida tanto pelos incorporadores quanto pelos clientes. Para os incorporadores, em algum momento pode ter sido importante atrair investidores, poder trocar o investidor de imóvel, ou até mesmo pode ter sido interessante distratar para revender com lucro.

Para os clientes, esquecer essa cláusula pode ter sido conveniente, pois vários eventos podem ocorrer durante o período de construção, e poder simplesmente desistir poderia ser um grande benefício.

E o pior, o esquecimento dessa cláusula contratual facilitou a entrada em massa de investidores no mercado comprando imóveis na planta. Baixo risco e possibilidade de lucros altos com a escalada dos preços.

Talvez essa cláusula só fosse lida pelos bancos financiadores, que são os únicos que ainda acreditam que recebíveis de imóveis na planta podem servir de alguma garantia em tempos de crise, que é justamente quando as garantias precisam funcionar…. como garantias!

Esse mecanismo tornou o contrato de compra e venda em uma opção de compra, praticamente de graça, ofertada aos adquirentes.

Todos os agentes estavam confortáveis com o modelo:
Os adquirentes de imóvel com intenção de uso, que tinham uma chance de comprar um imóvel na planta com relatividade flexibilidade de troca de posição, para os investidores, que tinham uma opção de graça (notem que o modelo de investimento pressupunha que o investidor revendesse sua unidade antes da entrega, não incorrendo nem em custo de transmissão, e com desembolso de algo em torno de 20% do preço, que é a média da parte do valor cobrado durante a obra);

As imobiliárias ganham gordas comissões para fazer uma venda que não é definitiva. E, ganham essa comissão várias vezes para a mesma unidade, pois cada vez que a unidade é distratada e revendida uma nova comissão é paga;

​Os bancos, que exigem dos incorporadores um mínimo de vendas, sem levar em consideração se essa venda é definitiva ou não;

Os incorporadores, que facilitaram ao máximo as vendas, pressionados por acionistas e investidores por resultados, cometendo o grave erro de medir a demanda do mercado pelas vendas de “opções” de apartamentos;

Os proprietários de terrenos, que viram uma valorização e uma disputa pelos terrenos nunca antes observada em todas as grandes cidades do Brasil, fazendo gordos lucros;

O problema é que nessa história toda houve um desequilíbrio claro entre direitos e obrigações dos clientes e dos incorporadores. Quando o setor viveu uma escalada de preços, e praticamente todas as incorporadoras tiveram estouro dos custos de obras, não houve a menor chance de repassar o aumento de custo para as unidades já vendidas. É razoável ser assim , pois foi assinado um compromisso irrevogável e irretratável com preço definido previamente entre as partes.

A valorização dos imóveis, que aconteceu em uma escala nunca antes observada, ficou toda para os adquirentes dos imóveis que compraram na planta, pouco restando desse lucro para os incorporadores. Também é razoável que seja assim, pois os adquirentes compraram na planta, correndo riscos, e é natural que se o preço do seu bem subir, que eles captem a valorização do seu patrimônio. Afinal de contas, assinaram um compromisso de venda e compra irrevogável e irretratável, com preço definido previamente.

E quando veio a crise e os preços caíram pelo excesso de oferta, queda de renda, desemprego, restrição de crédito por parte dos bancos, o que seria razoável acontecer, dado que os adquirentes assinaram um compromisso de Venda e Compra irrevogável e irretratável? Que houvesse uma perda por parte dos adquirentes, diminuindo seu patrimônio, pelo menos temporariamente. Mas o que aconteceu? Devolução em massa dos imóveis às incorporadoras, os chamados distratos, com uma penalidade muito baixa para os adquirentes. Foi o pequeno custo da opção que tiveram.

Ou seja, uma relação completamente desequilibrada em termos de risco versus retorno e de direitos versus obrigações.

É verdade que uma parcela significativa dos distratos foi causada pela alta dos juros, restrição ao crédito por parte dos bancos, perda de renda e emprego, etc. Mas é muito difícil para os incorporadores identificarem as reais causas dos distratos. Quem vai assumir o financiamento de um apartamento , comprando-o definitivamente por 100, se um igual no andar de baixo está à venda por 70? É mais fácil não entregar a comprovação de renda para o banco e ter a desculpa de ter seu crédito negado.

O modelo transformou mesmo os clientes que tinham a intenção real de uso e moradia em potenciais investidores.

Por várias e várias vezes li artigos e colunas de consultores financeiros nos principais jornais no País analisando a compra de imóvel na planta como um investimento. Pouquíssimos faziam uma análise real de todos os riscos envolvidos. Ora, a compra de um imóvel na planta não pode ser analisada como um investimento. Se assim o fosse, deveria haver uma regulação clara pelos órgãos competentes, e não há. É um acordo em que o cliente se compromete a pagar o imóvel, ao final da obra, e a incorporadora se compromete a construir e entregar em determinado prazo. Ao final da obra, a construtora fez a parte dela, e seu capital está lá , em tijolo e cimento. Quando não cumprem sua parte e atrasam a obra, são penalizadas com pesadas multas. O comprador por sua vez, também não deveria poder não cumprir sua parte no trato, independente do motivo. Não facilmente. Não imotivadamente. Não sem uma penalidade. Em qualquer país do mundo é assim.

Obviamente, não defendo que não possa haver rescisões. Defendo que hajam regras e elas sejam respeitadas, pelas partes e pelo judiciário, se for chamado para arbitrar conflitos. Que haja uma regra, porque se a regra for a possibilidade de distrato do imóvel imotivadamente com devolução do valor pago (funcionando como uma opção de compra), pelo menos todos os agentes saberão a regra do jogo e se prepararão para isso. Provavelmente será o fim da venda de imóveis na planta, pelo menos da forma como hoje acontece, tendo um potencial aumento substancial no preço dos imóveis.

Como já sabemos, o mercado imobiliário é cíclico e embora possa levar algum tempo, as curvas de oferta e demanda em algum momento voltarão a se aproximar, gerando novamente um novo ciclo de crescimento. Assim tem sido ao longo do tempo, no Brasil e no mundo.

Existem uma série de outros problemas e distorções no setor, como os mecanismos de funding imobiliário, o modelo de vendas (que é consequência do exposto acima), a insegurança jurídica, e vários outros. Todos sabemos que a atividade imobiliária não sobrevive muito tempo com o nível de juros hoje em vigor no Brasil.

Mas o certo é que , na retomada, se a questão central do modelo de incorporação não for resolvido, em alguns anos, ao fim do próximo ciclo de crescimento, estaremos todos reclamando dos mesmos problemas de sempre.

​Cabe aos agentes: incorporadores, bancos, imobiliárias, órgãos de defesa do consumidor, judiciário, MP, etc; com serenidade, debaterem e acharem um equilíbrio para essa relação, e uma vez achada , que ela seja acatada por todas. Importante tornar a venda da unidade “definitiva”, e existem boas ideias para ajudar, e que o distrato seja tratado como medida de exceção, com regras claras, e que não funcione como uma opção barata.

CEO – Leonardo Diniz
ldiniz@oakwood.com.br
www.oakwood.com.br